No Rastro do Espetáculo: Um
sintoma de desalento na porção dos druidas de Babel.
Fernando Ponçadilha
IEAB
Diocese Anglicana da Amazônia
Rubem Alves
Foto daa.ieab.org.br |
Há três coisas inventadas
pela civilização ocidental que são as responsáveis paradoxais pela sua glória e
inglória ao mesmo tempo: A Ciência, a Religião e a Moral. Para recheio e
controle desse esnobe triunvirato foram construídos ídolos e templos: com a
Ciência, vieram os sábios e as academias, a esses é permitido, no jogo do
poder, sentenciar quem deve ser o douto e o ignaro e ainda qual linguagem tem o
glamour dos heróis da cognição: se a da fácil compreensão entre mortais ou
aquela da pedra de roseta. E como se não bastassem esses preceitos tem o
receituário prescrevendo o modo como se deve proceder no uso da vara de condão
em termos de regras e padrões, sem os quais impiedosamente se é considerado
inapto para encenar o teatro das vestais no templo de Apolo.
O advento da Idade Moderna
recrudesce a hegemonia do pretensioso logos helênico que se impõe como tribunal
único sobre todas as esferas da vida: a) INTELECTUAL (iluminismo); b) ECONÔMICA
(industrialismo); c) POLÍTICA (liberalismo), até a Religião é alcançada
por meio dessa influencia. O cristianismo do mistério e da unção no Espírito
Santo cede lugar ao debate teológico esclarecido por métodos de análise
racional e por resultados investigativos da ciência. Isto vai provocar o
despertamento dos avivalistas e pentecostais enquanto movimentos não
conformados com esse padrão da ilustração, porque Deus é mistério e revelação e
não pesquisa e refutação.
Um pouco de psicanálise
enquanto procedimento terapêutico recomenda “esquecer o sabido para lembrar o
esquecido”. Traçando o difícil caminho do contra-método, relativizando essa
influencia que o helenismo desde Hipólito e Justino exerce sobre nossa
instrução na Fé. Fazendo aflorar um ensino que saiba, por mais paradoxal que isso
possa parecer, estabelecer a topografia do diverso, do imprevisível, da
efervescência, da paixão e do não-racional. Buscando nas fontes insurgentes a
essa “mente grega” dentro da tradição cristã (Benedito de Núrsia, Savonarola,
hussitas, valdenses, anabatistas, Pascal, Wesley, Francisco de Assis, etc.) e
nos movimentos místicos e avivalistas, bem como na reação do pentecostalismo
histórico do início do século XX; primeiro, a compreensão dos motivos pelos
quais essas atitudes se estabelecem à margem da tendência hegemônica que
concretamente formalizou solenemente a tradição apostólica como coisa positiva,
normal, superior, etc. Enquanto os “outros” são desvairados, fanáticos,
fundamentalistas, etc. Segundo, objetivando-se construir outro procedimento
pastoral e missionário para a formação de líderes que leve em consideração o
que se vive no espontâneo cotidiano das comunidades: simples, fantástico e
pulsante.
Essa é um pouco a
trajetória da ciência iluminista que tentou emparedar a religião. Mas,
tratando-se da Religião, como parte do triunvirato fundante da cultura
ocidental, vieram os sacerdotes e as igrejas. Já foi dito inclusive uma vez que
fora desses corifeus do além o mundo inteiro está perdido. Mas acontece que
2000 anos de ensino dum Cristo dócil e inofensivo em que boa parte desse tempo
se ressaltou mais a penitência do que a Graça resultou num mundo configurado
pela manutenção da opulência e da cobiça, um escândalo para o povo eleito que
assiste angustiado a contramão do propósito edemico. Ainda bem que essa
religião de cristandade está se esgotando com toda a pompa que lhe fez célebre:
Liturgias, Teologias, Moralismos, etc. Religião e Ciência são contrapostas na
origem dessa última, embora adotem o mesmo modus operandi no alcance do que
pretendem: princípios, normas e regras, porque nessa concepção não se faz
ciência e nem religião sem formalidades, num ritual espetacular de adoração no
sarcófago das múmias.
Como cremos na Palavra de
Deus (Eclesiastes 3.s.) que há tempo para todo propósito debaixo do Céu,
crê-se, pois, também, que é tempo de instaurar uma hermenêutica inédita que
traga um novo enfoque para a dimensão bíblico-evangélica da Fé Cristã, a partir
desse circunstancial paradigma em curso na visão emergente
apostólico-reformada-renovada que na relação dialógica contraditória com a
matriz niceno-canstantinoplana, com certeza resultará noutro horizonte, o
próximo a ser seguido por boa parte das igrejas cristãs.
Não há nenhuma
incongruência, pelo menos do ponto de vista bíblico, em fazer brotar uma
pastoral articulada e ressignificante entre as formas pessoais de luta contra
os sofrimentos e suas causas e a ação profética que vise abalar as estruturas
iníquas do inferno. Jesus, o mestre, deu vistas ao cego enquanto pessoa, curou
um paralítico enquanto pessoa, expulsou demônios de indivíduos, mas também
encheu de pão a barriga da multidão.
O problema é que por muito
perdurou o exclusivismo (ingênuo ou intencional) na ação missionária da Igreja.
De um lado o espiritualismo, como disse alguém, de “vagas perorações sobre a
necessidade de ter Jesus no coração e depois sorrir de felicidade”; e do outro,
o ativismo desenfreado que só enxerga “ação, luta, denúncia”. Nenhuma dessas
atitudes consegue alcançar a missão da Igreja em plenitude: pregação, espiritualidade,
partilha, profecia e imolação.
Toda igreja cristã hoje,
sobretudo as históricas, só conseguirá ser sinal de aproximação com Deus e
relevância na sua missão se operar interativamente essas dimensões da ação
missionária. Não há porque assustar-se com a atitude do pastor que promove a
corrente da vitória orando sobre a carteira profissional dos desempregados
depositada sobre o altar, e depois como gesto profético está no acampamento dos
Sem Terra reunindo os crentes e clamando ao Céu por chão num culto de
libertação.
É que as recentes
transformações no universo religioso atual, sobretudo de espiritualidade
pentecostal, apresentam novos questionamentos sobre o sentido da vida, e a
forma de responder desse movimento é facilmente compreendida pelo povo tanto do
ponto de vista da simbologia como do discurso.
Entretanto, retomando o
plano inicial desta reflexão, sobre as três invenções da civilização ocidental,
atesta-se que com a Moral, veio a família e os domicílios. A família é o
primeiro espaço onde os interditos proibitórios surgem porque é lá que se
ensina o que pode e o que não pode fazer em termos de ação. Os papéis que cada
um deve exercer como pessoa e na comunidade, na medida em que sem essas regras
de conduta burla-se a soberba noção de normalidade. Oh! Meu Deus! E aí começa a
melancolia de muita gente que quando resoluta no propósito, sofre porque
carrega um clamor diferenciado, que mal resolvido, no seu divã de transtorno,
destila amargura pra todo canto e pra todo gosto.
Religião, Ciência e Moral,
sempre fizeram, fazem e continuarão fazendo por muito tempo o percurso da Via
Apia: longo, cruel e tenebroso. Elas nivelam ideais e procedimentos no
processamento dos seus fins. A religião (ocidental), por exemplo, é marcada
pelo codex agostinianus que no final processa escrúpulos e fatalismos, coisa
muito diferente dos atributos do Jeová-Jiré bíblico farto em paciência,
providência e misericórdia. As religiões não ensinam a adoção de princípios e
escolhas, mas de preceitos, usos e costumes inventados por outrem em nome de
Deus. Essa distorção provoca atitude inusitada nas pessoas. Dessa forma que
muita gente convive no estranho cotidiano de suas decisões, isto é, ao final
pesa mais o escrúpulo do que o extraordinário, a Lei em vez da Graça. O que
mostra o quanto se precisa fazer a distinção entre orientação espiritual e
lição de moral, moralismo e ética. Uma pessoa pode orar pela corrupção e se
negar ir ao clube comemorar o ilícito alegando ser “evangélica”. Conheci uma
irmã em adultério que recusava sempre ir à praia por conta justamente desse
argumento: “ser evangélica” e que o corpo é templo de Deus. Não conseguimos
compreender até hoje essa explicação. È o mais abominável exemplo dessa
distorção considerando a disseminação atual ostensiva dessa outra pregação que
transtorna o Evangelho de Cristo conforme adverte Paulo em Gálatas 1,7.
As outras esferas da vida
que não se enquadram nessa profana comédia e nem passam pelas suas previsões:
as reuniões sem dono, a mística que envolve a alegria das crianças, as amizades
espontâneas, as conversas de livre pensar, a bela espiritualidade exótica, o
epopéico cotidiano da periferia, do ribeirinho que fuma um porronca enquanto
pesca sem se ocupar com o banzeiro, do caboclo que chega da roça na jornada
livre do meio dia e vai para o repouso merecido coçando uma frieira na borda da
rede sem a preocupação do executivo que quebrou na crise do mercado das trevas,
e o saber instituinte, sempre serão olhados com desconfiança e às vezes até com
desdém e perseguição, porque não carregam a marca da besta e nem processam
empáfia como os pretensiosos e mal resolvidos da caixa de pandora*.
Mas o espetáculo continua,
só que agora, extraordinariamente faceiro nesse tempo de predomínio da
fragmentação. Aquela Ciência rompante e pretensiosa do iluminismo que traçava
elo entre causa e efeito, projetando um mundo justo, lógico e esclarecido, sem
Deus e prognosticando uma era de prosperidade só dependendo dos seres humanos
com os recursos tecnológicos e científicos, entra em colapso como solução dos
males e da razão e cede lugar às emoções, irracionais, alógicas, etc. *
Estas emoções, um substare
da existência humana, estavam retidas nos porões do cognitivismo higiênico
iluminista em potes fechados por grilhões da empáfia.
Podemos dizer que uma das
marcas desse novo tempo é a erupção tsunâmica do derramamento emocional,
contido por dois ou três séculos, relegado à condição incômoda e execrável, e
que agora pode ser visto em diversos setores humanos, inclusive na Religião e
Moral. Aleluia!
Nem a Religião de
cristandade niceno-constantinoplana adornada pela tradição barroca vai escapar
desse nivelamento. Os novos movimentos religiosos rejeitam a tradição como
norteadora da vida das pessoas até porque estas não estão mais buscando
respostas convencionais como outrora se oferecia nas “confissões de fé”
(Siepierski, 2004) *.
Sensível às transformações
no seio da cristandade, J. Libânio (2004) *, salienta que o futuro do
cristianismo se compara à tragédia do Titanic no início do século 20. Bate, naufraga,
se acidenta. Alguns morrem, outros sobrevivem. O cristianismo é assim. Está
morrendo a sua forma antiga e ele vai renascer, mas não sabemos como, prevê o
sacerdote. Por isso é necessário muita escuta, percepção e sensibilidade. Será
que não é a hora de quebrar barreiras e preconceitos e estabelecer uma nova
forma de trabalhar a dimensão bíblico-evangélica da Fé Cristã? Sugere
Schunemann (2004)*.
Com a nossa velha
conhecida, a Moral judaico-cristã-agostiniana, escrupulária na mente e
dissimulada nas atitudes, vai acontecer um verdadeiro vendaval de dúvidas e
transgressões. Cláusulas pétreas com contornos antes bem definidos darão lugar
ao apelo fragmentário das emoções que retira desafios históricos à felicidade
humana do baú da confinação. A questão do corpo, da sexualidade, gênero, etc.
deixam de ser tratadas sob o estigma da libidinagem e da condenação e se
transformam em debate público desafiando velhos padrões e preconceitos,
causando pânico para os donos da verdade e dos “bons costumes” que em refregas
comoventes e divertidas contendas, assistem incômodos do alto da torre dos seus
antigos palácios, tensos, a caravana dos banidos passar em festa, por fora das
muralhas, para não envergonhar a Cidade.
Usando-se a percepção
mística estamos precisando de um novo pentecostes para soprar sobre o rastro da
Igreja de Cristo. A igreja não pode ser mais a mesma coisa porque intuímos que
o Espírito Santo, quando vem, nunca deixa tudo como encontra em nossa vida. Ele
não deixou jamais tranqüilos e sossegados aqueles sobre os quais veio. Aquele a
quem o Espírito santo toca, o Espírito Santo muda. Desse raio de luz pode
decorrer muita interrogação em vista do serviço que queremos prestar à Santa
Igreja de Cristo. Queremos “sentire cum eclesiae” ou “ludire cum eclesiae”?
Esse novo tempo exige de
cada um percepção, sensibilidade e atitude na missão que é de Deus.O cotidiano
das nossas congregações serve como termômetro para medir a temperatura do nosso
comprometimento com esse processo.O ministério cristão é chamamento para uma
tarefa dinâmica, intrépida e intimorata. Não é chamado para a instalação ou
acomodação. Quem processa instalação no ministério reproduz a igreja como
instituição mantendo a mesmice que lamentavelmente obsta a unção do espírito.
Está entre os incircuncisos de coração denunciados pelo próprio Cristo na sua
mais incisiva admoestação aos seus acusadores. Pois, não fomos feitos para nos
fecharmos como caramujos. É hora de atitude e de propósito. O povo de Deus
aguarda o sinal da vara de Moisés dando partida para a travessia.
Há sim
períodos na vida da Igreja em que a verdade de Deus fica escondida, ocasionando
aridez, sequidão e distância Dele. Um exemplo bem oportuno disso está na
história do povo de Deus no Antigo testamento, no tempo do rei Josias (v.v. 2º
Reis22). Naqueles dias, os homens andavam sem rumo na sequidão, sem
conhecimento da Lei do Senhor, que lhes estava encoberta. A redescoberta da
verdade do Céu conduz à reforma da Religião em Israel. Pessoas
como o sacerdote Hilquias e a profetisa Hulda são determinantes enquanto
instrumentos de Deus para a redescoberta do sentido transformador da Palavra de
Deus e do seu urgente anuncio (2º Reis 22. 15-17). Na instalação deixa-se de
ser missionário para se tornar funcionário e, por conseguinte, a Igreja perde o
caráter instituinte e passa ser instituída, correndo o grande risco de perder
sua nota substantiva enquanto processadora da missão de Deus.
Nesse
tempo, inclusive de despropósito e confusão na proclamação da Lei do Senhor por
parte de alguns, nós, do segmento histórico, precisamos oferecer nossos
préstimos em atenção, trabalho e dons no poder do Espírito Santo, para atender
os que clamam por inovação, empenho e atualização no cotidiano das nossas
comunidades, os sem rumo da diáspora que acabam não sendo acolhidos em
determinadas tendas, e enfim os homens e mulheres dos lugares onde nos situamos
e que conosco fazem a hora espalhando sementes da aurora, porque vivemos um
tempo das sensações, do subjetivismo e da paixão espiritual. Um tempo de novos
padrões da psique no seu caráter coletivo e secular, e porque não dizer, de um
novo tipo de cristianismo, mais espontâneo e menos solene, mais prático e menos
formal, mais missionário e menos de púlpito.
Op. Cit.
*PANDORA
A mentalidade politeísta vê pandora como a que deu
aos seres humanos a possibilidade de se aperfeiçoarem através das provas e da
adversidade ( o que os monoteístas chamam de males). Ela lhes dá assim a força
de enfrentarem estas provas com esperança.
Na Filosofia Pagã, Pandora não é fonte do mal; ela é
a fonte da força, da dignidade e da beleza, portanto, sem adversidade os seres
humanos não poderiam melhorar.
Comentário do Rev. Cláudio Linhares por e-mail.
*SIEPIERSKI, Paulo in Eclésia nº 93, 2004, artigo
sobre ecumenismo.
*LIBÂNIO, J. B. Ibidem.
*SCHUNEMANN, Ralf. Ibidem.
*FRANCO, Clarissa de (PUC/SP) in Ciência, Religião e
Para-ciência no âmbito de metáforas pós-modernas. (p.p-7).
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