terça-feira, 21 de setembro de 2010

Reverendo anglicano Fernando Ponçadilha reflete sobre a fé cristã na atualidade

No Rastro do Espetáculo: Um sintoma de desalento na porção dos druidas de Babel.
Fernando Ponçadilha
  IEAB
Diocese Anglicana da Amazônia
*Sem a educação das sensibilidades todas as habilidades são tolas e sem sentido*
Rubem Alves
Foto daa.ieab.org.br
Há três coisas inventadas pela civilização ocidental que são as responsáveis paradoxais pela sua glória e inglória ao mesmo tempo: A Ciência, a Religião e a Moral. Para recheio e controle desse esnobe triunvirato foram construídos ídolos e templos: com a Ciência, vieram os sábios e as academias, a esses é permitido, no jogo do poder, sentenciar quem deve ser o douto e o ignaro e ainda qual linguagem tem o glamour dos heróis da cognição: se a da fácil compreensão entre mortais ou aquela da pedra de roseta. E como se não bastassem esses preceitos tem o receituário prescrevendo o modo como se deve proceder no uso da vara de condão em termos de regras e padrões, sem os quais impiedosamente se é considerado inapto para encenar o teatro das vestais no templo de Apolo.
O advento da Idade Moderna recrudesce a hegemonia do pretensioso logos helênico que se impõe como tribunal único sobre todas as esferas da vida: a) INTELECTUAL (iluminismo); b) ECONÔMICA (industrialismo); c) POLÍTICA (liberalismo), até a Religião é alcançada por meio dessa influencia. O cristianismo do mistério e da unção no Espírito Santo cede lugar ao debate teológico esclarecido por métodos de análise racional e por resultados investigativos da ciência. Isto vai provocar o despertamento dos avivalistas e pentecostais enquanto movimentos não conformados com esse padrão da ilustração, porque Deus é mistério e revelação e não pesquisa e refutação.
Um pouco de psicanálise enquanto procedimento terapêutico recomenda “esquecer o sabido para lembrar o esquecido”. Traçando o difícil caminho do contra-método, relativizando essa influencia que o helenismo desde Hipólito e Justino exerce sobre nossa instrução na Fé. Fazendo aflorar um ensino que saiba, por mais paradoxal que isso possa parecer, estabelecer a topografia do diverso, do imprevisível, da efervescência, da paixão e do não-racional. Buscando nas fontes insurgentes a essa “mente grega” dentro da tradição cristã (Benedito de Núrsia, Savonarola, hussitas, valdenses, anabatistas, Pascal, Wesley, Francisco de Assis, etc.) e nos movimentos místicos e avivalistas, bem como na reação do pentecostalismo histórico do início do século XX; primeiro, a compreensão dos motivos pelos quais essas atitudes se estabelecem à margem da tendência hegemônica que concretamente formalizou solenemente a tradição apostólica como coisa positiva, normal, superior, etc. Enquanto os “outros” são desvairados, fanáticos, fundamentalistas, etc. Segundo, objetivando-se construir outro procedimento pastoral e missionário para a formação de líderes que leve em consideração o que se vive no espontâneo cotidiano das comunidades: simples, fantástico e pulsante.
Essa é um pouco a trajetória da ciência iluminista que tentou emparedar a religião. Mas, tratando-se da Religião, como parte do triunvirato fundante da cultura ocidental, vieram os sacerdotes e as igrejas. Já foi dito inclusive uma vez que fora desses corifeus do além o mundo inteiro está perdido. Mas acontece que 2000 anos de ensino dum Cristo dócil e inofensivo em que boa parte desse tempo se ressaltou mais a penitência do que a Graça resultou num mundo configurado pela manutenção da opulência e da cobiça, um escândalo para o povo eleito que assiste angustiado a contramão do propósito edemico. Ainda bem que essa religião de cristandade está se esgotando com toda a pompa que lhe fez célebre: Liturgias, Teologias, Moralismos, etc. Religião e Ciência são contrapostas na origem dessa última, embora adotem o mesmo modus operandi no alcance do que pretendem: princípios, normas e regras, porque nessa concepção não se faz ciência e nem religião sem formalidades, num ritual espetacular de adoração no sarcófago das múmias.
Como cremos na Palavra de Deus (Eclesiastes 3.s.) que há tempo para todo propósito debaixo do Céu, crê-se, pois, também, que é tempo de instaurar uma hermenêutica inédita que traga um novo enfoque para a dimensão bíblico-evangélica da Fé Cristã, a partir desse circunstancial paradigma em curso na visão emergente apostólico-reformada-renovada que na relação dialógica contraditória com a matriz niceno-canstantinoplana, com certeza resultará noutro horizonte, o próximo a ser seguido por boa parte das igrejas cristãs.
Não há nenhuma incongruência, pelo menos do ponto de vista bíblico, em fazer brotar uma pastoral articulada e ressignificante entre as formas pessoais de luta contra os sofrimentos e suas causas e a ação profética que vise abalar as estruturas iníquas do inferno. Jesus, o mestre, deu vistas ao cego enquanto pessoa, curou um paralítico enquanto pessoa, expulsou demônios de indivíduos, mas também encheu de pão a barriga da multidão.
O problema é que por muito perdurou o exclusivismo (ingênuo ou intencional) na ação missionária da Igreja. De um lado o espiritualismo, como disse alguém, de “vagas perorações sobre a necessidade de ter Jesus no coração e depois sorrir de felicidade”; e do outro, o ativismo desenfreado que só enxerga “ação, luta, denúncia”. Nenhuma dessas atitudes consegue alcançar a missão da Igreja em plenitude: pregação, espiritualidade, partilha, profecia e imolação.
Toda igreja cristã hoje, sobretudo as históricas, só conseguirá ser sinal de aproximação com Deus e relevância na sua missão se operar interativamente essas dimensões da ação missionária. Não há porque assustar-se com a atitude do pastor que promove a corrente da vitória orando sobre a carteira profissional dos desempregados depositada sobre o altar, e depois como gesto profético está no acampamento dos Sem Terra reunindo os crentes e clamando ao Céu por chão num culto de libertação.
É que as recentes transformações no universo religioso atual, sobretudo de espiritualidade pentecostal, apresentam novos questionamentos sobre o sentido da vida, e a forma de responder desse movimento é facilmente compreendida pelo povo tanto do ponto de vista da simbologia como do discurso.
Entretanto, retomando o plano inicial desta reflexão, sobre as três invenções da civilização ocidental, atesta-se que com a Moral, veio a família e os domicílios. A família é o primeiro espaço onde os interditos proibitórios surgem porque é lá que se ensina o que pode e o que não pode fazer em termos de ação. Os papéis que cada um deve exercer como pessoa e na comunidade, na medida em que sem essas regras de conduta burla-se a soberba noção de normalidade. Oh! Meu Deus! E aí começa a melancolia de muita gente que quando resoluta no propósito, sofre porque carrega um clamor diferenciado, que mal resolvido, no seu divã de transtorno, destila amargura pra todo canto e pra todo gosto.
Religião, Ciência e Moral, sempre fizeram, fazem e continuarão fazendo por muito tempo o percurso da Via Apia: longo, cruel e tenebroso. Elas nivelam ideais e procedimentos no processamento dos seus fins. A religião (ocidental), por exemplo, é marcada pelo codex agostinianus que no final processa escrúpulos e fatalismos, coisa muito diferente dos atributos do Jeová-Jiré bíblico farto em paciência, providência e misericórdia. As religiões não ensinam a adoção de princípios e escolhas, mas de preceitos, usos e costumes inventados por outrem em nome de Deus. Essa distorção provoca atitude inusitada nas pessoas. Dessa forma que muita gente convive no estranho cotidiano de suas decisões, isto é, ao final pesa mais o escrúpulo do que o extraordinário, a Lei em vez da Graça. O que mostra o quanto se precisa fazer a distinção entre orientação espiritual e lição de moral, moralismo e ética. Uma pessoa pode orar pela corrupção e se negar ir ao clube comemorar o ilícito alegando ser “evangélica”. Conheci uma irmã em adultério que recusava sempre ir à praia por conta justamente desse argumento: “ser evangélica” e que o corpo é templo de Deus. Não conseguimos compreender até hoje essa explicação. È o mais abominável exemplo dessa distorção considerando a disseminação atual ostensiva dessa outra pregação que transtorna o Evangelho de Cristo conforme adverte Paulo em Gálatas 1,7.
As outras esferas da vida que não se enquadram nessa profana comédia e nem passam pelas suas previsões: as reuniões sem dono, a mística que envolve a alegria das crianças, as amizades espontâneas, as conversas de livre pensar, a bela espiritualidade exótica, o epopéico cotidiano da periferia, do ribeirinho que fuma um porronca enquanto pesca sem se ocupar com o banzeiro, do caboclo que chega da roça na jornada livre do meio dia e vai para o repouso merecido coçando uma frieira na borda da rede sem a preocupação do executivo que quebrou na crise do mercado das trevas, e o saber instituinte, sempre serão olhados com desconfiança e às vezes até com desdém e perseguição, porque não carregam a marca da besta e nem processam empáfia como os pretensiosos e mal resolvidos da caixa de pandora*.
Mas o espetáculo continua, só que agora, extraordinariamente faceiro nesse tempo de predomínio da fragmentação. Aquela Ciência rompante e pretensiosa do iluminismo que traçava elo entre causa e efeito, projetando um mundo justo, lógico e esclarecido, sem Deus e prognosticando uma era de prosperidade só dependendo dos seres humanos com os recursos tecnológicos e científicos, entra em colapso como solução dos males e da razão e cede lugar às emoções, irracionais, alógicas, etc. *
Estas emoções, um substare da existência humana, estavam retidas nos porões do cognitivismo higiênico iluminista em potes fechados por grilhões da empáfia.
Podemos dizer que uma das marcas desse novo tempo é a erupção tsunâmica do derramamento emocional, contido por dois ou três séculos, relegado à condição incômoda e execrável, e que agora pode ser visto em diversos setores humanos, inclusive na Religião e Moral. Aleluia!
Nem a Religião de cristandade niceno-constantinoplana adornada pela tradição barroca vai escapar desse nivelamento. Os novos movimentos religiosos rejeitam a tradição como norteadora da vida das pessoas até porque estas não estão mais buscando respostas convencionais como outrora se oferecia nas “confissões de fé” (Siepierski, 2004) *.
Sensível às transformações no seio da cristandade, J. Libânio (2004) *, salienta que o futuro do cristianismo se compara à tragédia do Titanic no início do século 20. Bate, naufraga, se acidenta. Alguns morrem, outros sobrevivem. O cristianismo é assim. Está morrendo a sua forma antiga e ele vai renascer, mas não sabemos como, prevê o sacerdote. Por isso é necessário muita escuta, percepção e sensibilidade. Será que não é a hora de quebrar barreiras e preconceitos e estabelecer uma nova forma de trabalhar a dimensão bíblico-evangélica da Fé Cristã? Sugere Schunemann (2004)*.
Com a nossa velha conhecida, a Moral judaico-cristã-agostiniana, escrupulária na mente e dissimulada nas atitudes, vai acontecer um verdadeiro vendaval de dúvidas e transgressões. Cláusulas pétreas com contornos antes bem definidos darão lugar ao apelo fragmentário das emoções que retira desafios históricos à felicidade humana do baú da confinação. A questão do corpo, da sexualidade, gênero, etc. deixam de ser tratadas sob o estigma da libidinagem e da condenação e se transformam em debate público desafiando velhos padrões e preconceitos, causando pânico para os donos da verdade e dos “bons costumes” que em refregas comoventes e divertidas contendas, assistem incômodos do alto da torre dos seus antigos palácios, tensos, a caravana dos banidos passar em festa, por fora das muralhas, para não envergonhar a Cidade.
Usando-se a percepção mística estamos precisando de um novo pentecostes para soprar sobre o rastro da Igreja de Cristo. A igreja não pode ser mais a mesma coisa porque intuímos que o Espírito Santo, quando vem, nunca deixa tudo como encontra em nossa vida. Ele não deixou jamais tranqüilos e sossegados aqueles sobre os quais veio. Aquele a quem o Espírito santo toca, o Espírito Santo muda. Desse raio de luz pode decorrer muita interrogação em vista do serviço que queremos prestar à Santa Igreja de Cristo. Queremos “sentire cum eclesiae” ou “ludire cum eclesiae”?
Esse novo tempo exige de cada um percepção, sensibilidade e atitude na missão que é de Deus.O cotidiano das nossas congregações serve como termômetro para medir a temperatura do nosso comprometimento com esse processo.O ministério cristão é chamamento para uma tarefa dinâmica, intrépida e intimorata. Não é chamado para a instalação ou acomodação. Quem processa instalação no ministério reproduz a igreja como instituição mantendo a mesmice que lamentavelmente obsta a unção do espírito. Está entre os incircuncisos de coração denunciados pelo próprio Cristo na sua mais incisiva admoestação aos seus acusadores. Pois, não fomos feitos para nos fecharmos como caramujos. É hora de atitude e de propósito. O povo de Deus aguarda o sinal da vara de Moisés dando partida para a travessia.  Há sim períodos na vida da Igreja em que a verdade de Deus fica escondida, ocasionando aridez, sequidão e distância Dele. Um exemplo bem oportuno disso está na história do povo de Deus no Antigo testamento, no tempo do rei Josias (v.v. 2º Reis22). Naqueles dias, os homens andavam sem rumo na sequidão, sem conhecimento da Lei do Senhor, que lhes estava encoberta. A redescoberta da verdade do Céu conduz à reforma da Religião em Israel. Pessoas como o sacerdote Hilquias e a profetisa Hulda são determinantes enquanto instrumentos de Deus para a redescoberta do sentido transformador da Palavra de Deus e do seu urgente anuncio (2º Reis 22. 15-17). Na instalação deixa-se de ser missionário para se tornar funcionário e, por conseguinte, a Igreja perde o caráter instituinte e passa ser instituída, correndo o grande risco de perder sua nota substantiva enquanto processadora da missão de Deus. Nesse tempo, inclusive de despropósito e confusão na proclamação da Lei do Senhor por parte de alguns, nós, do segmento histórico, precisamos oferecer nossos préstimos em atenção, trabalho e dons no poder do Espírito Santo, para atender os que clamam por inovação, empenho e atualização no cotidiano das nossas comunidades, os sem rumo da diáspora que acabam não sendo acolhidos em determinadas tendas, e enfim os homens e mulheres dos lugares onde nos situamos e que conosco fazem a hora espalhando sementes da aurora, porque vivemos um tempo das sensações, do subjetivismo e da paixão espiritual. Um tempo de novos padrões da psique no seu caráter coletivo e secular, e porque não dizer, de um novo tipo de cristianismo, mais espontâneo e menos solene, mais prático e menos formal, mais missionário e menos de púlpito.  
Op. Cit.
*PANDORA
A mentalidade politeísta vê pandora como a que deu aos seres humanos a possibilidade de se aperfeiçoarem através das provas e da adversidade ( o que os monoteístas chamam de males). Ela lhes dá assim a força de enfrentarem estas provas com esperança.
Na Filosofia Pagã, Pandora não é fonte do mal; ela é a fonte da força, da dignidade e da beleza, portanto, sem adversidade os seres humanos não poderiam melhorar.
Comentário do Rev. Cláudio Linhares por e-mail.
*SIEPIERSKI, Paulo in Eclésia nº 93, 2004, artigo sobre ecumenismo.
*LIBÂNIO, J. B. Ibidem.
*SCHUNEMANN, Ralf. Ibidem.
*FRANCO, Clarissa de (PUC/SP) in Ciência, Religião e Para-ciência no âmbito de metáforas pós-modernas. (p.p-7).

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