domingo, 30 de maio de 2010

Beber do mesmo poço
Ouvi de um amigo, tempos atrás, uma história rica em símbolos e que ajudava a entender os dilemas do ecumenismo. A história certamente circula hoje e é provavelmente bem conhecida. Vale, contudo, a pena repeti-la por seu poder de tornar claro, através de imagens, um aspecto da questão ecumênica que gostaria de refletir aqui por ocasião da memória dos 100 anos da  Conferência Missionária Mundial de Edimburgo (1910).
Conta a história que uma pequena aldeia vivia bem e desfrutava de boas relações entre todos, embora fosse pequena, pobre, simples, distante e sujeita a muitas dificuldades. No centro daquela aldeia havia um poço de água de excelente qualidade. Não era um poço gigantesco, mas oferecia água boa e abundante para todos e para todas as atividades.
A vida na aldeia girava em torno deste singelo poço. Mulheres, crianças, idosos e os homens passavam várias vezes ao dia pelo poço. No poço todos se encontravam e, enquanto esperavam a sua vez de retirar do poço sua quantia necessária de água - que era também correspondente à capacidade de cada um carregar sobre os próprios ombros - conversavam alegremente e interessadamente. Na verdade, em torno do poço a vida acontecia e tecia seus delicados laços. Todos podiam compartilhar e se inteirar de tudo o que acontecia na aldeia. Aquelas partilhas estendiam uma espécie de tapete de solidariedade, pois, ao redor do poço, todos ficavam sabendo quem estava doente e necessitava de cuidados, os que estavam com dificuldades e precisavam de ajuda, quem simplesmente aguardava um ouvido amigo para partilhar suas dores, quem tinha incertezas e precisava de apoio. Em suma, o poço evitava que alguém fosse “ao fundo do poço” numa jornada solitária e longe do convívio da aldeia.
 
Além disso, as crianças brincavam em torno do poço e faziam bagunça, provocando a reação dos demais. As pessoas idosas podiam ali conversar longamente sobre suas mazelas físicas, mas, e principalmente, podiam trocar impressões e visões do mundo e da vida. As mulheres podiam partilhar dores e as incompreensões sofridas, mas podiam principalmente olhar-se no rosto e revigorar os corpos cansados pela luta diária, apoiando-se mutuamente. Os homens, após a luta no trabalho podiam refrescar-se na fonte, conversando como iguais e reorganizando as forças e as esperanças para a batalha pela sobrevivência. Tudo isso ocorria em torno do poço que provia para todos a mesma água que matava as sedes do corpo e do espírito. O poço unia a aldeia no gesto simples de buscar água no mesmo poço.
 
Como nada permanece parado no tempo, os ventos da mudança alcançaram a pequena aldeia. Uma das mudanças ocorreu justamente no poço. Uma vez que a água é um bem precioso e  fundamental para conservação da vida, acharam que o modo de utilização do poço era muito rústico e resolveram melhorar a distribuição da água. Uma grande obra foi realizada: melhoraram a captação de água, criaram vários mecanismos para evitar que a boa água do poço fosse contaminada e, então, espalharam pela aldeia uma complexa malha de canos para que a água fosse distribuída a domicílio. Ninguém precisaria mais caminhar até a fonte com baldes e tambores para buscá-la. Ela agora chegaria pelos canos, fresca e tranqüila, para o consumo de cada um, de cada família.
 
Conta-se que a aldeia progrediu enormemente. A realização das tarefas diárias (preparar comida, fazer pão, lavar roupa, tomar banho, regar a colheita, lavar os currais e chiqueiros, fazer queijos, preparar doces, etc.) ficou muito mais prática. As pessoas podiam fazer muito mais com bem menos tempo. Tudo havia ficado muito mais calmo por lá. Não havia mais tanta gente na rua, caminhando em direção ao poço, não havia mais crianças brincando e fazendo algazarra por ali, não havia mais conversas na praça em torno do poço. Em resumo, não havia mais poço visível como lugar de encontro. Havia, sim, mais tempo para trabalhar. Na verdade, poucos sabiam agora onde ainda localizava-se o poço, pois sobre o local fora erguida uma construção estranha que em nada mais lembrava um poço.
 
O tempo passava e todos esqueciam. Ninguém sabia mais do que ocorria na aldeia. Logo surgiu um jornal, mais outro e uma rádio. As pessoas agora não ouviam mais os acontecimentos da cidade de viva voz e diretamente da boca da pessoa que passava por uma situação ruim ou difícil. Eram notícias sobre pessoas sem rosto. Havia também pessoas que representam os moradores e que decidiam sobre melhorias na distribuição da água. A coisa toda foi sendo cada vez mais setorizada, departamentalizada e cada setor ou departamento criava regras próprias de distribuição e fazia campanhas informando à população sobre as melhores formas de consumo da água. Cada setor ou departamento considerava sua forma de cuidar, distribuir e consumir a água a melhor. O tempo passava e, como os discípulos fechados e de portas trancadas (Jo 20.19), os que ainda se lembravam estavam todos dominados pelo medo de voltar à praça, voltar a encontrar-se em torno do poço comum. As novas gerações sequer lembravam, pois haviam perdido esta memória.
 
Esta história pode certamente ilustrar o clima do cristianismo ao longo do século XIX. Não eram poucas nem superficiais as questões. Por que haveriam de se unirem os cristãos? Afinal, a glória de Deus não coincidia com as fronteiras de nossas igrejas, denominações? Em geral, tendia-se a ter dúvidas quanto a primeira pergunta e, inconscientemente, tendia-se a concordar com a segunda. Estas questões estavam presentes no alvorecer do século XX e “desaguaram” na Conferência Missionária Mundial, realizada em 1910, em Edimburgo, Escócia. Esta Conferência tornou-se um marco para o pensamento cristão moderno diante da irrevogável tarefa missionária e do inalienável desafio da unidade cristã. 
 
Embora fosse parte de uma sucessão de outras conferências focadas na questão da missão entre povos não cristãos, a Conferência de Edimburgo (1910) representou um momento especial, pois destacou de maneira especial a necessidade da unidade cristã para o testemunho ao mundo. Não se tratava de discussões abstratas sobre unidade, pois eram as Sociedades Missionárias - em sua maioria braços missionários de igrejas históricas - que chegavam a esta constatação. A conferência colocou em evidências temas que formariam a base das questões do nascente movimento ecumênico. A percepção de que a diversidade de nações e raças presentes na conferência podia experimentar uma fraternidade inaudita a partir de sua “unicidade em Cristo” marcou aquela conferência.
 
Num livro, entrementes muito conhecido, Richard Niebuhr investigava em 1929 as origens sociais do denominacionalismo cristão e apontava para os prejuízos éticos disso para o cristianismo.  Niebuhr escreveu após os alvissareiros sinais da Conferência Missionária Mundial, pouco antes da Primeira Guerra Mundial e na borda do abismo de uma grave deterioração econômica. Ele enfrentou estas questões e procurou tematizar o escândalo que representava as separações entre os/ãs cristãos/ãs. No seu entender havia razões de ordem mais sociais do que teológicas para explicar o denominacionalismo.  No seu entender, o denominacionalismo traduzia o “fracasso moral” do cristianismo, porque seu enraizamento social produz o enfraquecimento da ética específica do cristianismo, a da fraternidade. Neste sentido, a Igreja teria não só acolhido as divisões e conflitos que pretendia transformar num mundo perturbado como também os teria patrocinado. Somente uma Igreja disposta a transcender estas divisões teria condições de anunciar o cristianismo de Cristo e dos evangelhos mediante a ética da fraternidade rumo a uma unidade de comunhão. Somente esta Igreja, assentada na “irmandade”, poderia salvar as igrejas da “ruína” do seu “secularismo” e de suas “divisões”.
 
As argutas análises de Niebuhr têm um sentido duplo. Por um lado, elas traduzem e ampliam, 19 anos depois, as intuições da Conferência de Edimburgo. Por outro lado, as ricas indicações de Niebuhr rumo ao que ele chama de “via para a unidade” confirmam o caminho sugerido por aquela Conferência. Assim como se confirma hoje, Niebuhr também já acenara para os requisitos que esta tarefa impunha, pois não se chega a esta unidade sem passar pelos “corações pacificadores”, sem atravessar a porta estreita que conduz à “via do arrependimento” e sem percorrer a trilha amarga da “via do sacrifício”. Não, porém, outra via que leve aos “valores eternos do reino de Deus que estão entre nós”.  Contudo, a Conferência Missionária de Edimburgo continua esperando, 100 anos depois, desdobramentos sempre mais concretos de suas intuições.
 
Não é certamente, simples, desmontarmos o complexo aparato para captação e distribuição da água da fonte que criamos ao longo dos séculos. Além de abrir mão do óbvio e doméstico conforto de ter água encanada, precisamos recuperar uma simplicidade perdida: beber do mesmo poço! No mundo que avança velozmente para soluções sempre mais tecnológicas, parece descabido falar de simplicidade.  Mas o que seria a espiritualidade cristã senão a constante busca da simplicidade, da transformação em crianças? Trata-se do cultivo de uma “infância espiritual” (Gutiérrez) que nos pode levar novamente a conversar e brincar em torno do mesmo poço, sabendo que necessitamos da face da irmã e do irmão assim como precisamos da água da fonte para viver: “Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim. Eu, a quem tem sede, darei de graça da fonte da água da vida.” (Ap 21.6).
 
Valério Guilherme Schaper, teólogo e membro da Comissão Teológica do CONIC

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